Ricardo Gondim.
José Cícero despertou subitamente. Sentiu falta do canto do galo que rompia o silêncio um tiquinho antes do amanhecer. “Que diabo, comemos o galo", pensou sem pensar. Virou-se na rede e viu os ossos triturados que se espalhavam pelo chão e ainda mexeu o queixo para lembrar a dor de mastigar aquela carne dura com os últimos cinco dentes que lhe restavam na boca. “Arre”, pensou e falou sua interjeição incompleta. Ainda quis acordar a mulher que roncava com a boca meio aberta, mas desistiu, ela não se bulia; parecia num coma, de tão apagada.
José Cícero ainda tentou levantar-se da rede, mas sua alma pesava mais que o corpo esquálido e assim permaneceu, olhando para o teto. Lentamente, pingos de luz brotaram pela palha esgarçada. Há muitos anos José Cícero não via aquela invasão lenta do dia; a última vez que contemplara a visita do sol por entre a carnaúba que protegia sua casa estava com febre e nem gostou do que viu. “Arre”, repetiu mais uma vez, sem emoção.
Há dois anos não chovia no Amargoso e José Cícero não queria ver mais uma manhã sem nuvens; na verdade, ele estava prestes a desistir da vida. Seu único desejo era continuar ali, deitado como um rei em berço esplêndido ou, quem sabe, como um náufrago que já não espera por salvamento. “Arre égua, que vida, essa minha”, completou a frase.
José Cícero nascera ali bem perto, no casebre que ladeia o charco onde cresce a cana. Dizem que no dia em que veio ao mundo, uma coruja deu um rasante com aquele vôo sinistro que soa como se rasgasse mortalha. Naquela manhã até pensou em sua sina de sofrer, mas aquietou o coração quando lembrou que o Tonho, a Zilda, o Bastião e todos os amigos de infância sofreram igualzinho - todos, desdentados.
Sem ânimo e sem força, empunhou a borda da rede e conseguiu se erguer. Os meninos dormiam, respirando no mesmo ritmo que Chica, a mulher que lhe parira os quatro meninos morredores - dos sete, só três vingaram. Enterrou Mundinho, o primogênito, quatro dias depois que nasceu; em sua vida curta, Mundinho só chorou.
Em pé, José Cícero abriu a janela que rangeu como um lamento e espiou as cruzes das quatro covas. Lembrou-se qual era a do Mundinho, a única que lhe provocou alguma lágrima. Quando enterrou Zé Carlos, Carminha e Cícero Junior sentiu igualzinho como se abrisse buraco para as sementes de feijão no mês de dezembro, pouco antes da chuva – que nunca vinha; nesses outros enterros, não mexeu nenhum músculo do rosto.
Parado, José Cícero parecia querer recobrar as forças do tempo em que serviu o Tiro de Guerra e ouviu do sargento que era cabra macho, bom de briga. Mas ainda não completara 37 anos e já se sentia um velho, carcomido pelas estiagens, pela gordura de porco que colocava no feijão ralo e pela água imprestável que deu a diarréia que matou os meninos. Imóvel, viu o sol arder e brilhar com uma força descomunal cobrindo o mato de um cinza mortiço.
Chica balbuciou alguma coisa, mas José Cícero não reagiu; absorto, tentava adivinhar onde enterrara os meninos. Contou da direita para a esquerda, quase soletrando o nome dos filhos, mas as cruzes não lhe falavam coisa alguma. Alguns passarinhos o despertaram daquele torpor e ele se voltou para o barulho que a mulher fizera. Não era nada, Chica ainda dormia.
José Cícero se inquietou, Chica nunca dormira até tão tarde. Chegou a pensar que a mulher fingisse para não ter que ir buscar água no barranco, mas se corrigiu: “Não, Chica nunca perdeu a coragem, isso ela tem de sobra”. Mas e os meninos, por que não acordavam? Temeu perder a família toda. “Se a coruja voar de novo rasgando mortalha, morre todo mundo”, pensou.
Já passava das sete, quando ouviu:
-O que tu tá fazendo, aí parado?. Era o jeito rude de desejar um bom-dia de dentro da rede.
– Sei lá, mulher, tô só, cá comigo, pensando na vida.
– E pensar na vida resolve nada?
– A gente tem que buscar água, porque a do pote secou ontem de noitinha. Avexe porque tô pedindo penico, mulher. Não agüento mais essa vida. Hoje não vou buscar água, não.
– Homem, deixe de coisa. E os menino? Se lembre que a gente ainda tem três pra dar de comer e de beber e não tem nada em casa.
– Pois é neles mesmo que estou pensando. Pra que viver do jeito que a gente vive, Chica? Minha vida foi só sofrimento e a deles também vai ser. Feliz foi o Mundinho que não teve que passar pelo que a gente passa e já é anjinho. Esses três vão virar gente grande e o que vai ser deles?Teve um pastor que passou por aqui me dizendo que se gente grande não se arrepender vai pro inferno. Então mulher, não é melhor morrer logo?
– Ciço, pára de besteira, você tá ficando doido. Não blasfema de Deus, teu padim, o Padre Cícero, vai pedir por nós.
Naquele exato momento, José Cícero se lembrou da romaria que fez até o túmulo do seu padim em Juazeiro. Voltou-se para o armador da rede e o chapéu de palha continuava pendurado para dar sorte; o mesmo que o padre benzeu prometendo que ia trazer fartura no próximo inverno - já fazia dois anos que não pingava quase nada. José Cícero perdera toda a plantação nos dois anos e não se conformava que, por mais que olhasse para o horizonte, as nuvens não empreteciam.
– Sabe, Chica? Eu acho que Deus não liga pra gente. Ele prefere os filhos do doutor Virgílio. Eu me lembro do dia em que o Tiago teve febre e o doutor me pediu para ir buscar o médico da cidade. Bastou o menino tomar a injeção e já tava bonzinho. A gente enterramos quatro filhos no chão seco, sem direito a caixão. Eu me lembro da hora que jogava terra na cara do Mundinho. Eu dizia: "Não é direito não ter nem uma caixa de sapato para proteger o filho dessa terra seca; nós nem pode enterrar com a rede porque tem que guardar a rede pros outro.
–Ciço, por favor, não fala desse modo. Eu te peço pela hóstia consagrada, não blasfema de Deus.
– Nesse mundão, cada um tem que se proteger como pode. Eu tentei, mas num tenho mais força, mulher. Comemos o galo e hoje não tem nada pra por no fogo. Como é que vou caçar? Vendi a espingarda que era do pai. E não tem mais nem tatu para matar, mulher. A seca tá muito braba.
– Pois eu vou aderir à lei dos crentes. Vou no culto deles pedir com muita fé pra Deus mandar chuva.
Chica se levantou, foi até o quintal, urinou, ajeitou a lata vazia na cabeça e seguiu para o barranco, antes que acabasse a água do dia.
Logo que chegou no buraco lamacento notou o pequeno filete d’água, mas só se alegrou de verdade quando notou a irmã Salete - a crente mais conhecida da redondeza.
– Bom dia.
–Bom dia, respondeu a irmã Salete, baixinho.
– Irmã, vim pedir pro modo de você pedir pra Deus pra ele mandar chuva.
Salete continuou calada. Chica precisou mirar os olhos da irmã para entender o que acontecia. Salete chorava com duas tiras de lágrimas correndo pelos sulcos cavados pelas rugas. Arquejada e abatida, tentava separar o barro com os dedos para que a água não se tingisse de branco. Chica perguntou o que estava acontecendo.
– Precisei vir mais tarde buscar água porque acabamos de enterrar os nossos dois filhos, a Miriam e o Pedro; morreram de diarréia.
Fez-se um silêncio constrangedor; não se ouviu mais nada a não ser um leve sicio do vento abrasador.
Soli Deo Gloria