Gosto da palavra "outro". Ela não tem paradigmas. Se há "outro", há diferença. Se não há diferença, mas apenas um "outro" igual, ainda assim, o vocábulo se destaca em sua igualdade. Uma palavra mágica! Ela desafia, quebra e convida ao partilhar.
Vejamos alguns dos nossos muitos outros:
Mulher: o outro do mesmo gênero. As culturas patriarcais e machistas conjugaram os principais valores na forma do masculino. Em razão dessa denominação a mulher foi submetida, marginalizada e tornada socialmente invisível. Aristóteles e sua visão de que "a mulher é um homem que ficou a caminho" teve ressonância em Tomás de Aquino, com ecos em Freud, Lacan. No âmbito eclesiástico, elas ainda não têm uma "cidadania eclesial".
Homossexuais: o outro condenado. A maior necessidade dos cristãos hoje em relação aos homossexuais é de um resgate do amor e do respeito. É não confundir a igreja com um tribunal mortal declarando condenação a todos. Sem a graça nossa mensagem é vazia.
Enfermos: o outro marcado. Do HIV à loucura (transtornos psíquicos), a sociedade tenta livrar-se deles criando instituições. Além da enfermidade - que já é um fardo - ainda há o peso de olhares nocivos. Os que sofrem não precisam de mais carrascos. Isso sem falar nos portadores da Síndrome de Down e do Mal de Alzheimer.
Idosos: o outro de outro tempo. Na cultura dominante, há uma concentração exorbitante na figura do jovem, de seu vigor, de sua beleza física, de sua capacidade de desempenho sexual, de possibilidades de consumo e de plasmar o futuro. Enquanto isso os idosos são colocados de lado como força de trabalho já gasta, com possibilidade limitada de consumo e, não raro, como peso morto da história.
Iletrados: o outro cultural. O que esquecemos é que eles possuem uma vasta experiência de vida. Gente que tem a sabedoria da vida, o supremo talento da sobrevivência. Hoje está surgindo o "iletrado digital", outro que não conhece tecnologias outras.
Classe social: o outro ignorado. São objetos da manipulação demagógica da política. Sobre eles está a pecha da rudeza, da falta de educação, da violência e da ignorância generalizada. São os marginalizados. Nascidos no berço das injustiças sociais.
Excluídos: o outro desumanizado. Frutos da perversidade social. Praticamente 2/3 da humanidade vive sob condições de exclusão. Fome, doenças, baixos salários, à margem da cultura e da arte.
Estranhos: o outro de outro jeito. São todos que não cabem na configuração oficial das sociedades. Em João 1.11 e Marcos 3.21, Jesus é classificado assim. Esse tipo de gente precisa ser tratada não como estranha, mas como diferente, e membro da comunidade. A igreja primitiva quebrou a hegemonia do estranho ao celebrar as diferenças. A palavra "irmão" é a quebra da estranheza.
Estrangeiros: o outro de outra nação, de outra gente. Desde o século VIII cristãos e islâmicos se enfrentam em guerras absurdas. A África negra e a tragédia da escravidão cultural e sexual. Os indígenas (inclusive os Astecas, Maias e Incas, encontrados pelos ibéricos que colonizaram o continente). No Brasil do "descobrimento", o indígena foi interpretado como não-pessoa e escravizado. É o que Leonardo Boff chama de "assalto cultural". Em 1537, o Papa Paulo III escreveu o primeiro documento oficial destinado à América Latina, a bula "Sublimis Deus", para reafirmar que os índios são "verdadeiros homens, que não devem ser privados de sua liberdade, nem do domínio de suas coisas, nem devem ser reduzidos à escravidão". Essa bula jamais foi publicada, pois o rei tinha poder de vetar sua divulgação. É o velho paradigma do inimigo e da guerra.
Terroristas: o outro terrível. Gente (nações) que possui armas de destruição em massa. Gente que precisa aprender a defender seus direitos no respeito às fronteiras dos outros. A destruição do outro, no fim, é a minha também.
A terra e a natureza: o outro planetário, cósmico. O Grande Outro. A terra foi agredida e forçada a revelar seus segredos. Esquecemos que fazemos parte desse ambiente. Não há como lotar um avião e ir morar em Marte - a Terra - ainda é nossa Casa Comum.
Danah Zohar, fisica quântica, escreveu: "A verdade é que nós e os outros somos um só, que não há separatividade, que nós e o 'estranho' somos dois aspectos da única e mesma vida".
Todo esse conflito com o outro é a patologia da identidade. A aliança é a categoria central do legado bíblico. Esta aliança se estabelece com Deus e com os outros. Por isso, o outro, a princípio, não é um estranho, mas um aliado. O Novo Testamento afirma que o próprio Deus, por sua encarnação, se fez outro em Jesus Cristo. É no outro, portanto, que encontramos a máxima densidade da presença de Deus.
Como escreveu Dostoiévski, em "O sonho de um homem ridículo", de 1877: "Se todos quisessem, tudo mudaria sobre a terra num momento".
Até mais...
Alan Brizotti
Prs Darci e Miriam Francisco
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