Dizer que Deus-Pai guarda coisas para si que não são reveladas ao Deus-Filho, inferioriza Jesus. Ele não poderia ser uma divindade da mesma “estatura” do Pai, já que não seria onisciente por completo, sendo que a onisciência é um atributo divino. Mas, a máxima cunhada por Tertuliano, que foi reafirmada pela ortodoxia cristã diz “uma substância, três pessoas”. Por substância, devemos entender que é o elo incomum entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, no qual se baseia a unidade da Trindade. É devido à substância ser a mesma que não ocorre uma divisão entre as três pessoas da Deidade, gerando uma unidade na diversidade. Assim, Pai, Filho e Espírito Santo desempenham papéis diferentes no plano de salvação (Trindade econômica), sem que haja a perda dessa unidade.
Após Tertuliano, talvez Agostinho de Hipona tenha sido o teólogo que mais contribuiu com a doutrina trinitária, principalmente na tradição ocidental. Ele então afirma que não se pode subordinar (ontologicamente) as pessoas da Trindade. Na eternidade eles são iguais em atributos, poder e glória. Portanto, se afirmarmos, como fez o Granconato, que Deus-Pai retém algum conhecimento para si, logo, caímos no equívoco da subordinação eterna. Contudo, como defende Berkhof[1], a natureza divina é indivisível, isto é, seus atributos estão presentes de maneira igual entre todas as pessoas da Trindade. Franklin Ferreira até recomenda rejeitarmos a prática de enumerar os membros da Deidade (e.g. Jesus é a segunda pessoa da Trindade) e diz que a razão para não fazermos isso está na indivisibilidade da natureza divina, inexistindo subordinação entre elas. Logo, embora sendo três personas distintas, elas não se somam.[2]
Granconato, frente ao que já foi exposto, ainda pode argumentar que isso não resolve a dificuldade presente no texto de Mateus 24.36. O que é verdade. Mas o ponto aqui deveria ser o seguinte: no afã de responder esse mistério, é válido prejudicar a doutrina trinitariana? Pois, se a Trindade é o cerne da adoração cristã, não podemos ter uma compreensão equivocada da mesma. Embora reconhecendo que o assunto é complexo, podemos subir “nos ombros de gigantes” e falar sobre a Trindade sem que a plena igualdade de seus membros seja distorcida.[3]
Para interpretarmos Mateus 24.36, a teoria da kenosis não seria a melhor resposta, como alguns deram ao Granconato em debates nas redes sociais. Pois, dizer que Cristo se esvazia, no sentido de deixar de ter seus atributos, seria o mesmo que afirmar que ele não mais teria a substância que concede unicidade à Trindade. O esvaziamento a que a Escritura se refere (vide Fp 2.6-8) não é referente a atributos, mas sim a posição de Cristo, que sendo igual a Deus-Pai em soberania e glória, encarna, e num estado de humilhação se coloca em condição de subserviência.
Então, para sermos coerentes com a doutrina reformada da unipersonalidade de Cristo, presente nas confissões e catecismos, que dizem existir no Salvador duas naturezas, divina e humana, na mesma pessoa, isto é, não são duas pessoas, mas apenas uma que comporta concomitantemente o status divino-humano, devemos observar a contribuição do extra-calvinisticum.[4] A contribuição em questão, que foi o ponto de discordância entre calvinistas e luteranos, diz, em suma, que os atributos divinos não devem ser limitados pela encarnação. Embora haja completa divindade no Verbo encarnado, pois a natureza divina se uniu a natureza humana numa mesma pessoa, seus atributos não estão confinados na carne, eles estão presentes dentro e fora do corpo de Cristo. Por isso que quando Cristo morre na cruz, a divindade não morreu, pois, a natureza divina não participa da fraqueza humana. Assim como também, as limitações da natureza humana não alcançam os atributos divinos. Por isso que Cristo foi limitado circunstancialmente, mesmo que na sua eterna essência ele nunca tenha deixado de lado a sua onisciência. Esta é uma posição que se enquadra com os postulados de Calcedônia e que faz jus ao fato de Cristo responder que não sabia o futuro, todavia sem deixar de ser onisciente.
Para ficar mais claro, tomemos outro atributo como exemplo: a onipresença. Quando Jesus, em sua forma corpórea deslocava-se de um lugar para o outro, não seria ele, como membro da Trindade, um ser onipresente? O conceito extra-calvinisticum vai dizer que mesmo ele ascendendo aos céus corporalmente, e estando à destra do Pai, se faz presente na ceia. Logo, a encarnação não pode delimitar a divindade de Cristo. Vejamos o que nos diz o Catecismo de Heidelberg:
Pergunta 47- “Mas não está Cristo conosco até o fim do mundo, como nos prometeu?”
Resposta - “Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem; quanto à sua natureza humana, agora já não está na terra; mas, quanto à sua divindade, majestade, graça e espírito, em nenhum momento está ausente de nós.”
Pergunta 48 – “Se a sua humanidade não está onde quer que esteja a sua divindade, então não estão as duas naturezas de Cristo separadas uma da outra?”
Resposta - “Certamente não. Visto que a divindade não está limitada e está presente em toda parte, fica evidente que a divindade de Cristo está certamente além dos limites da humanidade que ele tomou, mas ao mesmo tempo sua divindade está em e pessoalmente permanece unida à sua humanidade.”
Como bem observa o Dr. Heber Campos[5] “Segundo o pensamento reformado, o Logos está no Cristo total, mas a natureza divina do Logos extrapola os limites físicos da natureza humana”. Pois, o infinito não cabe no finito. Se esta não é uma resposta totalmente satisfatória, é de longe a melhor resposta para lhe dar com a dificuldade em questão, pelo simples fato de não trazer prejuízo a cristologia, e nem desembocar numa concepção equivocada da Trindade.
Concluo dizendo que entendo a complexidade do assunto e que todo teólogo está sujeito a dar suas “escorregadas”. O pastor Marcos Granconato é alguém teologicamente gabaritado e que possui anos e anos de labor ministerial, contudo, não está imune aos erros. No entanto, acredito que ele tenha escolhido muito mal a sua resposta frente a uma questão difícil. Talvez, diante da dificuldade de expor o texto, seria melhor apenas dizer que a questão da união hipostática é um mistério inefável, para usar palavras do próprio Calvino. E não negar a ontológica onisciência do divino Logos, como preferiu. Não apenas por sua imagem, mas por zelo pela sã doutrina, cairia bem uma revisão de sua concepção, reconhecendo que seu ensino abre um precedente muito perigoso que pode resultar em noções heréticas da doutrina trinitária.
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P.S. Gostaria de esclarecer três coisas: A primeira delas é que optei por fazer um texto breve, por achar mais propício devido à densidade do assunto. A segunda é que o Granconato é um irmão em Cristo, não o trato como um adversário. E por fim, não tenho a mínima intenção de gerar um debate cheio de desdobramentos, portanto, esse texto será o único em que exponho o que outros autores já expuseram com maestria. Destaco aqui o Dr. Heber Campos e suas obras sobre a união hipostática das naturezas de Cristo.
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